Página PrincipalA Revista Cadernos ARTE E CULTURA Era uma vez...
Por Natália RosaFotos: Divulgação
Numa terra não muito distante, crianças que viviam debruçadas em computadores, televisões e videogames. Elas estavam aprisionadas naquele moderno castelo tecnológico. Até que um dia, uma dessas crianças encontrou um livro velho, empoeirado, e começou a ler. Rapidamente ela criou asas e voou para bem longe dali.
Através da leitura, a criança amplia sua capacidade de compreender o mundo. Pesquisas realizadas em vários países mostram que a criança que, desde cedo, tem contato com os livros e possui hábito de leitura é beneficiada, ou seja, ela adquire facilidade de aprendizado, pronuncia melhor as palavras e se comunica de maneira correta. “A leitura permite que a criança desenvolva de forma efetiva a criatividade e a imaginação, por meio de conhecimento, valores e culturas”, afirma a pedagoga e professora do ensino infantil, Margot Demóstenes.
A literatura infantil é recheada de grandes histórias e marcada pelos contos de fadas. Essa ideia de princesas, príncipes, bruxas e feitiços traz a remota ilusão de que a vida se resume num aspecto que não existe, diferentemente das histórias que trazem em suas narrativas uma realidade vivida pelas crianças em seu dia a dia.
Saulo Sabino em apresentação no musical "Viva a Fauna"Os contos de fadas, as mil e uma noites, são apenas algumas facetas da chamada literatura infantil. O modelo literário vem sendo construído ao longo dos tempos, apesar de opiniões contrárias que já chamam atenção e provocam debates.
Segundo a psicanalista, Regina Navarro, é um grande erro contar as fábulas encantadas para as crianças. No caso das meninas, ela aponta que a ideia central dos contos subestima a capacidade das mulheres, onde elas ficam o tempo todo esperando um socorro de um homem, gerando assim dependência e submissão. Já no caso dos meninos a pressão existe pela busca incessante de um super herói. Por mais que exista um desempenho ímpar desses garotos a frustração ocorrerá, “o que nasce no imaginário das crianças sobrevive na fase adulta”, conclui a psicanalista.
As histórias infantis precisam alçar voos altos no imaginário das crianças, pois elas necessitam em algum momento acreditar que a narração é real, e se encaixar naquele contexto, seja através do ambiente ou como um personagem. Os renomados escritores Monteiro Lobato, Maurício de Souza e Ziraldo aquecem essas fábulas permitindo que os leitores criem uma moldura real e participativa diante dos textos.
“Meus livros, veleiros disfarçados. Pegue sua mochila e venha viajar com eles”, sugere a escritora itaguarense, pós graduada em Literatura Infantil e Juvenil e mestra em Literaturas de Língua Portuguesa, Neusa Sorrenti. Ela defende o equilíbrio dentro da literatura, ou seja, é preciso uma boa pitada de realidade com um incremento de fantasia resultando numa mistura saudável para leitura.
Existem, dentro da literatura, algumas vertentes do realismo. O realismo cotidiano, que é o dia a dia da criança ocupando um ambiente próximo e peculiar dentro das narrações, é uma delas. Há também o realismo maravilhoso, que são as fábulas irreais - os contos de fadas. “Entre eles tem ainda a mescla entre o realismo cotidiano e o mágico, fácil de perceber nas histórias de Lobato quando existe uma história real que se rompe à medida que a boneca de panos começa a falar e que o sabugo de milho faz contas matemáticas. Essa é a fusão do real com o transreal”, conta Neusa.
Sandra Lane
Elementos da natureza são sempre atrativos para as crianças tornando o ambiente característico. Dessa forma elas identificam e familiarizam como integrante da história. A contadora de histórias, Sandra Lane, em suas apresentações oferece ao público a possibilidade de inúmeras leituras através de fantoches, teatro de sombras e, claro, através de suas narrações. “O que gosto mesmo é daquela literatura que consegue deslumbrar o nosso imaginário, onde de repente a gente se sente surpreendido porque se descobre dentro do texto”.
Os contos de fadas têm em sua essência uma relação forte com a realidade de seu tempo e, principalmente, retratam uma cultura distante. Segundo o compositor e cantor Saulo Sabino, as histórias encantadas pertencem à outra cultura. “Li tudo a respeito e guardo as melhores lembranças, mas meu imaginário infantil cresceu a partir da visão literária de Monteiro Lobato. Minha visão de um mundo maravilhoso não está em um castelo da Baviera, mas nas terras do Sítio do Pica-Pau Amarelo”, afirma Saulo.
A literatura cantada de Saulo Sabino abre espaço para outro viés de imaginação, “antes da canção, fui uma criança apaixonada por livros, o que foi fundamental. Ganhei meu primeiro livro de minha avó e se chamava A Pata da Onça. Fui alfabetizado cedo para a época, por minha mãe – professora, e jamais me esqueci da textura do papel, as cores, o texto da história. De imediato queria ser capaz de montar histórias como aquela. De lá para cá foi um pulo virar compositor e cantor de histórias”.
O imaginário coletivo brasileiro - que é a fonte dos personagens, lendas e mitos- não perde em criatividade e riqueza diante das fábulas europeias. Os tradicionais contos de fada transferem crueldade, onde, por exemplo, madrastas são sempre más. A maioria dos contos, lendas e mitos brasileiros remete à cultura tupi-guarani e caboclo-negra-sertaneja, com riqueza de construção. O cantador de histórias, afirma ainda que “pode parecer mais palatável contar para crianças sobre Joãozinho e Maria, abandonados pelos pais numa floresta, onde encontram outro adulto que tem por objetivo comê-los. Finalmente - pasmem - eles são capazes de dar cabo da velhinha comedora de crianças e de se apropriarem da sua casa. Como literatura é genial, mas bem mais cruel e menos edificante do que o boto que se transforma em moço bonito para dançar e namorar as moças nos bailes. Ou do Curupira, que pega pesado com caçadores por ser protetor das matas e dos animais,” completa.
O importante, ao final, é que crianças precisam de condições para serem crianças. Não basta ter acesso às tecnologias e desfrutar de presentes especiais, é preciso criar uma estória ao lado delas agregando capacidade de imaginar e fantasiar a partir de uma realidade vivenciada no dia a dia, possibilitando, assim, que elas ensaiem um final feliz.
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